Supersônica editora deste Segundo Caderno, quem escreve para a senhora é a Maria do Socorro, a Help, que trabalha aqui com a dona Adriana. Estou escrevendo porque não sei dizer por onde anda a sua colunista e no caso de ela mesma não saber também, mando uns escritos para não deixar a senhora na mão. Se ela mandar os escritos dela, publique os dela, no caso de serem publicáveis, se não, e se a senhora quiser, pode usar estes meus aqui. Dona Supersônica, esta semana, ela, que tem agenda, mas nunca encontra lápis, como consequência tinha de estar em dois lugares ao mesmo tempo de manhã, de tarde e de noite de segunda a sexta-feira. As pessoas, os contratantes, os músicos, o público, as crianças, não têm nada a ver com o fato de que ela não sabe encontrar um lápis, portanto, ela precisa cumprir todos os compromissos para os quais diz “sim”, mas não anota. Poderia ter tudo no celular, eu acho, mas não confia nem nas companhias telefônicas nem na internet, e diz que a coisa mais confiável do mundo ainda é uma velha agenda de papel. Até faz algum sentido, mas sem o lápis... A propósito, agora tem recebido lápis em profusão, todo mundo querendo ajudar, chegam caixas e caixas de lápis, e ela segue criticando o desmatamento. E dizendo “sim” para compromissos humanamente incumpríveis, uma irresponsável desabalada com cara de boazinha.
Na quinta-feira à noite em Porto Alegre, na abertura do 21º Festival Porto Alegre em Cena, teve a estreia da dona Mísia, uma diva, fadista, muito inteligente e muito engraçada, amiga dela. É um espetáculo novo, que ela escolheu estrear em Porto Alegre, onde canta os “seus” fadistas brasileiros, Caymmi, Cartola e Lupicínio. São arranjos que revelam o Fado que está na composição musical, em elementos musicais da arquitetura de algumas das canções deles e não apenas na superfície dos arranjos, como uma mera brincadeira de cantar os três autores arranjados à la fado. Existem diferentes tipos de fado, isso já ouvi falarem. Sei que elas choram de rir de umas coisas que eu achava que eram sérias e ficam sérias falando do quanto o fadista Dorival Caymmi é “dark”, por exemplo. Às vezes fica puxado, dona Super. Bom, ela não apareceu na estreia, que todo mundo disse que foi um arraso, sendo que é a diretora do show. Dona Mísia ficou no palco cantando o fado dos três brasileiros e falando da polenta frita de Porto Alegre, que dona Adriana a ensinou a gostar e do quanto agora ela está viciada, e coisas assim, que, imagino, devem ser típicas, tradicionais do fado. Mas a diretora que é bom não apareceu, o que estranhou-se um pouco. Fora o fato de ter que estar em mais de dois lugares àquela mesma hora, em cidades diferentes, ainda assim, foi inesperado. Aí, dona Super, eu que já conheço um pouco, comecei aqui com meus botões a matutar e a desconfiar que o que está acontecendo no fundo é que ela está com vergonha do Grêmio.
Um dos três fadistas da dona Mísia é o Lupicínio Rodrigues, que ela sempre encheu boca para dizer que era negro e que escreveu o hino do Grêmio. Ela sempre teve muito orgulho disso. No silêncio profundo das conversas que ela tem com o seu Verissimo, ela nunca perguntou, porque tem muito respeito, faz bastante cerimônia com ele, mas eu sei que está ali, na ponta da língua uma desastrosa “e quem foi mesmo que escreveu o hino do Internacional?”
Eu sei que o que deve estar pesando é que a torcida, ou parte dela, é flagrada, vista, gravada, assistida gritando insultos racistas ao goleiro santista negro e não admite o comportamento. Diz que não queria ofender. Estava elogiando o goleiro chamando-o de macaco? Depois fogem da cidade. Não só não admitem como fogem ou negam, e pior, o clube vai recorrer da decisão exemplar, inédita no mundo, para o comportamento inaceitável, sendo que, se fosse o Grêmio a vítima, acharia a pena leve. O Grêmio vai recorrer da decisão ao invés de acatá-la, vai tentar prejudicar a competição toda por um comportamento que não mudará se não for com punições rigorosas. Sei que ela deve estar pensando na honra do seu Lupicínio, na honra da sua avó tão amada, que a ensinou a gostar do Grêmio, na dos honrosos gremistas “de ponta”. O Grêmio teve a Coligay, a primeira torcida gay do Brasil, que não agredia ninguém, que não fazia apologia de nada, que queria apenas divertir-se nos estádios, dar pinta e assistir aos jogos. Isso foi nos anos 70. Agora, já no século seguinte, esse mesmo clube, ou sua torcida, está chamando os atletas adversários negros de macacos? E o clube ao invés de admitir e aceitar a punição em nome de um propósito maior que é erradicar o racismo dos estádios, das concentrações públicas, da face da terra, enfim, vai entrar com recurso? O mascote do Internacional é o Saci Pererê; e o do Grêmio, um mosqueteiro branco, aristocrático. Se eu conheço sua colunista, dona Super, ela deve estar muito envergonhada, calada, sumida, pulando por aí de árvore em árvore. Vou procurar.
O Globo
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